Folhetim de 09 de agosto de 2021
OMI-JUPIC
ANTES EU SONHAVA; AGORA NEM DURMO
EDUARDO BUENO, historiador
O historiador não contesta a violência brutal promovida contra indígenas e negros nas expedições do séculos 16 e 17, as chamadas “bandeiras”. Afirma, porém, que Borba Gato não se envolveu nas caça- das e na matança. Mas não por bondade. Não participou porque não calhou de participar, porque chegou em um outro momento histórico. Se não, evidentemente ele teria participado.
O historiador e escritor afirma que Borba Gato viveu cerca de 20 anos de forma pacífica em meio a tribos indígenas, contestando a versão de alguns historiadores. “Sou totalmente contrário ao vandalismo e ao ataque aos monumentos”. É preciso haver uma discussão sobre esses personagens históricos; e num segundo momento, a retirada de estátuas poderia ser feita. Vamos discutir Borba Gato; vamos discutir Raposo Tavares. Na maior parte das vezes essas estátuas são atacadas por pessoas que não conhecem a história daqueles personagens.
É óbvio que eu não sou a favor e nem defendo Borba Gato; mas ele não foi um caçador de índios. Ele esteve muito mais ligado ao chamado “ciclo do ouro” embora isso seja uma falácia. O Brasil possui muitos monumentos em homenagem a pessoas que mataram, estupraram. A história do Brasil não é pacífica. É horrível. O BOM O BRASIL RECORDAR O TEMPO INTEIRO QUE NUNCA FOI UM PAÍS MANSO E PACÍFICO. SEMPRE FOI O PAÍS DE DESIGUALDADE, SEMPRE FOI UM PAÍS DE INJUSTIÇA, SEMPRE FOI O PAÍS DO DESEQUILIBRIO SOCIAL. SEMPRE. Essas estátuas refletem isso.
No caso dos bandeirantes, é muito importante que São Paulo saiba como eles são uma invenção da historiografia paulista. O termo “bandeirantes” não era usado na época; eles eram chamados de “paulistas” ou de “sertanistas”. As expedições buscavam minérios, metais e pedras preciosas e no caminho apreendiam indígenas. Esses indígenas da região onde Borba Gato estava não eram índios “afeitos” à escravidão. Seu sogro, Fernão Dias, tinha participado com Afonso Tavares da destruição das missões jesuíticas e do aprisionamento em larga escala dos guaranis, que era um povo mais afeito ao trabalho agrícola e ao trabalho coletivo. Os índios da região de Minas Gerais onde Borba Gato escravidão com lucro efetivo. Ele tinha desistido de escravizá-los, mas não por uma questão de bondade ou não porque os bandeirantes não escravizavam, mas porque eles não viam utilidade nisso.
Borba Gato, então, não participou da escravização e morte de indígenas; houve exceções e ele estava nessa exceção. A ação das “bandeiras” foi obviamente devastadora. O ciclo do ouro causou um grande impacto ambiental de desmatamento. O ciclo do ouro e da mineração no Brasil é de uma crueldade brutal. O fato de indígenas que participaram do início dele já estarem extintos por doença ou pela ação predatória dos bandeirantes fez com quem fossem levadas grandes quantidades de escravos africanos para participar do ciclo seguinte. Todos os ciclos econômicos foram de uma crueldade brutal. Não se trata de ressignificar a violência inerente a esse processo.
A leitura que faço dos trabalhos de Júlio Guerra é que ele é um cara que fez a estátua da Mãe Preta e fez uma estátua de ladrilhos com trilhos de trem; é um cara que está dando um recado velado de deboche ou de contestação. Não há dúvida que ele tenha produzido uma obra de arte que foi incendiada por um grupo que se autointitula “Revolução Periférica” que quer chamar atenção à escravização de índios e negros no processo econômico.
No Parque do Ibirapuera, em São Paulo, há um Monumento às Bandeiras que retrata a barbárie paulista; é uma canoa enorme entulhada de indígenas e brancos. Com ela se davam as incursões Rio Tietê no sentido oeste, para longe do mar. O batelão vai se arrastando com esforço hercúleo dos indígenas que povoavam a terra paulista, e que sustentavam essas viagens fluviais. As “bandeiras” se realizavam em geral à pé; os bandeirantes eram gente pobre, quase sempre descalça, desprovida das botas ostentadas pelo Borba Gato.
Cabe a pergunta: quem eram os heróis reais da empreitada, os senhores que encabeçavam a coluna ou a massa de fortes que davam o sangue sobre o qual desliza a história? A estátua de 13 metros mostra mostra um homem em pose estática, olhar vazio e fixo, individuo solitário cujo único apoio é a arma. Protótipo brutalista da supremacia caipira, para glorificar o genocídio com construção de nação, quando os paulistas não passavam de pobretões em busca de ouro.